O Corvo: Amor, dor e perdão
Por: Francielle Férreira (Mística Literária)
A série de histórias em quadrinhos “O Corvo” (1981) de James O’Barr (1960), artista de quadrinhos e escritor americano, é uma imersão ao sofrimento passional. A inspiração trágica para essa série foi o fato da noiva de James ter morrido atropelada por um motorista bêbado.
O autor se sentia culpado pela morte da amada, conforme expôs de forma comovente o motivo:
“Eu era um adolescente inconsequente que não pagou os impostos do carro. Os tiras iam identificar meu carro na hora, então telefonei pra Menina que era a Shelly e disse: “Meu bem, por que não vem me buscar? Não tenho como pagar mais uma multa”.
“Foi um daqueles momentos fatídicos em que a sua vida vira de cabeça pra baixo sem motivo algum... uma série de escolhas que tropeçam, caem que nem dominós e terminam em consequências irreversíveis. Quando ela estava vindo me buscar, um motorista bêbado passou por cima dela. A Menina que era a Shelly morreu na hora. Na minha cabeça, gralhas a uma lógica símia e tortuosa, eu fui o culpado”.
“Se eu tivesse pagado os impostos... se tivesse esperado mais dez minutos pra ligar... se eu tivesse dito um simples “Quem sabe te vejo amanhã, fofa!”. Se, se se...”.
“Tive a esperança de que, se botasse toda a minha fúria assassina no nanquim e no papel, de algum jeito, por mágica, toda a dor, toda mágoa e toda tendência autodestrutiva que se seguiu iam viram fumaça”.
Somente a arte consegue expressar cada linha de uma dor não curada, da raiva, da amargura que a perda traz. Foi exatamente isso que o autor fez, através de sua brilhante alma de artista.
Não é apenas uma história em quadrinhos sombria, mas sim uma confissão poética da dor de perder a mulher amada e se vingar por ela. A editora Darkside criou uma edição especial de luxo dessa inebriante obra. Fez jus à profundida e beleza gótica dos quadrinhos.
A trama acompanha a trágica história dos noivos Eric Draven e Shelly, brutalmente assassinados por criminosos implacáveis — Tin Tin, Fun Boy, T-Bird, Top Dollar e Tom Tom — após o carro do casal quebrar em uma estrada de terra, em pleno mês de outubro. Inclusive, Shelly foi estuprada e levaram sua aliança. Um ano depois, Eric recebe a oportunidade de voltar do mundo dos mortos, com a ajuda de um corvo sobrenatural, para se vingar. As mensagens nos quadrinhos são profundas, veja-se:
“Dor? Eu sou o homem que ferve... Conheço a dor em nível molecular... Dor que puxa meus átomos... Que canta comigo no alfabeto do medo... Vim quebrar os ossos dos seus pecados, fantoche de carne...”
“Avivam-se os mortos, poesia deformada num idioma imperfeito, carne e sangue e rostos a nos encarar... Tão cinza, tão aflitivo, vigoroso como aço, mas por dentro escombros, o corvo ri sob o poste, sorriso vodu daquele que viveu e morreu, porém ainda vive...”.
“Que Deus lhe conceda a piedade que não posso dar”.
“Há um homem... tocando um violino... cujas cordas... são os nervos do próprio braço”.
“A alma sofrida: a argamassa... O desespero: os tijolos... para construir um templo da tristeza”.
“Tudo o que ele quer é dor. Dor e ódio. Sim, o ódio. Mas nunca o medo. O medo é para o inimigo. O medo e os tiros”.
“Como a morte é maravilhosa. A morte e seu irmão sono”.
“Tiros não vão me deter... facas não vão me ferir... olhe... olhe para mim!!! Eu sou um erro humano, sou o sofrimento fetal, eu sou o cromossomo independente. Eu sou a loucura total, absoluta... Eu sou o medo”.
“Mãe é o nome de Deus nos lábios e no coração de toda criança”.
“Existe mais de uma maneira de purificar a alma... Existe a remissão e a redenção, a salvação e os meios de se chegar a um fim. E se algum desses axiomas forem de polos opostos, ao menos há certo consolo no fato de que possuem a mesma base”.
“Aquele que luta com monstros, deve atentar para também não se tornar um monstro”.
“Você vê meu sorriso nas palavras, triste e maligno? Triste porque fiquei absolutamente só. Maligno porque estou morto, mas ainda vivo”.
“A solução não é apenas sobre justiça ou vingança. É sobre perdão”.
James explicou a escolha do nome dos personagens: “Escolhi o nome Shelly por causa de Mary Shelly que escreveu Frankenstein. Eric veio de O Fantasma da Ópera, porque a morte de “Shelly” me transformou em um monstro por baixo da pele, escondido pelo rosto estoico da normalidade. Tal como um cartógrafo doido, tracei uma paisagem de nanquim tomado de raiva. Se não havia justiça no mundo real, eu a inventaria”.
O escritor foi muito inteligente na escolha dos nomes, principalmente, tendo em vista que, nos dois livros que ele cita, os protagonistas sofrem imensamente por suas condições existenciais.
“O Corvo” foi adaptado para o cinema duas vezes, com o nome homônimo, em 1994 e em 2024. Infelizmente, na versão lançada em maio de 1994, o ator Brandon Lee faleceu em decorrência de um tiro durante uma cena do filme. Em virtude disso, algumas cenas tiveram que ser gravadas por um dublê e por meio de efeitos visuais. Considerando o enredo do filme sobre a dor pela perda de um amor, o destino foi muito cruel, tendo em vista que Brandon estava noivo e se casaria em 17/04/1993 com Eliza Hutton.
A morte de Brandon também afetou profundamente James O’Barr que teve que aprender a se perdoar duplamente. Segundo ele,
“Outra parte foi aceitar a morte do meu amigo Brandon Lee no set da adaptação de O Corvo para o cinema. Na época, a mesma culpa e a mesma autodepreciação se avolumaram na minha alma (“Se eu não tivesse escrito essa merda...”) e ameaçaram me afogar, me sufocar. Foi com a ajuda e a compaixão da noiva de Brandon, a linda Eliza Hutton, que consegui voltar à margem”.
Por fim, James amava profundamente sua noiva, assim como seu personagem Eric. Ambos tiveram que aprender a perdoar a si mesmos pela culpa que alimentaram em suas mentes entorpecidas pela dor. Que saibamos nos perdoar também, pois o perdão faz parte do amor que cura a dor.



