Série Vícios e Virtudes: um caminho para ‘driblar’ a gula

Série Vícios e Virtudes: um caminho para ‘driblar’ a gula
Foto de Tim Samuel (Pexels.com)

O tema de hoje na série Vícios e Virtudes é a Gula e seu oposto: Temperança. Segundo nosso consultor, o Prof. Dr. Pedro Jeferson Miranda – que leciona Filosofia Tomista, dentre outras áreas de atuação – a temperança sempre foi um assunto presente nas discussões filosóficas desde a antiguidade.

No livro Onze lições sobre a virtude – Comentário ao Segundo Livro da Ética de Aristóteles (*), de Santo Tomás de Aquino, que foi monge e filósofo italiano (1225-1274), encontramos uma definição bem didática: “[...] A temperança é o freio das paixões [indevidas]”. (*) Tradução de Tiago Tondinelli - Ed. Ecclesiae – 2013, pág. 82).

Nosso entrevistado descreve que “numa visão de mundo mais transcendental, a temperança é essencial para aquele que busca a arete – do grego, excelência, virtude”.

Acrescenta que “em outras visões de mundo mais materialistas, há a visão hedonista:  naquela onde tudo gira em torno do ‘prazer da carne’ relacionado em particular à comida, à bebida, ao descanso e ao sexo”; e uma visão epicurista, na qual há uma preocupação na moderação dos prazeres, mas ainda assim, o prazer é o bem supremo”.

No mesmo contexto, ele explica que “o prazer concupiscente – associado ao corpo – não pode ser um bem supremo, pois um bem supremo não possui limite de fruição [utilização]’. O professor explica: “Dou-vos um exemplo: pense no alimento que mais te agrada; imagine que você toma uma porção dele. Muito bom. E mais uma! Legal. E mais outra! Hmmm. E outra! ... Agora, aquilo que era prazeroso e bom se torna desagradável e mau. Note então que mesmo o alimento, sendo necessário à vida, tem um limite de fazer o seu bem, seja para a nutrição seja pelo seu apelo estético, que é a sua agradabilidade. A fim de contrastar, pense na sabedoria. Existe um limite em que a sabedoria passa a ser um mal como a comida? Não! Pois então, agora você entende por que é necessária a temperança para o controle dos bens lícitos como a comida e a bebida”.

A ansiedade como justificativa para a gula

Há quem diga que come e bebe em excesso “por ansiedade”. Algumas pessoas, insatisfeitas com as consequências, recorrem a psicólogos e até mesmo a psiquiatras, em busca de medicação, na expectativa de controlar os impulsos de comer e beber. No entanto, esses medicamentos podem ter efeitos colaterais desagradáveis e nem sempre resolvem o problema. Então, qual seria outra maneira de controlar a ansiedade sem tomar medicamento, quando isso é possível?

“A ansiedade está na moda. Vejo muita gente chamando de ansiedade o que só é intemperança. Ou covardia. Ou preguiça. O uso de medicamentos ‘para se controlar’ é um quadro mais espiritual que clínico. É achar que a falta de virtude vai ser resolvida com um medicamento. Isso tudo é só máscara. O problema sempre vai estar lá e você terá que trocar seu medicamento de tempos em tempos para não “viciar” seu organismo [...]”, argumenta nosso entrevistado.

Mas, então, o que fazer? Você pode começar com uma reflexão. O professor sugere: “A primeira coisa positiva a se fazer para combater a ansiedade real e a pseudoansiedade – que mais parece um quadro de histeria –, é parar por um momento e pensar o que você é. Quais são suas aspirações, seus reais objetivos, seus sonhos. O ansioso tende, com frequência, a se ater num ciclo de pensamentos viciados, inúteis. Esses pensamentos quase sempre se referem a algo que está por vir. Ele antecipa o tempo todo o que pode e o que não pode ser. Antecipa o bem, o mal, o sucesso e o fracasso [...]”.

No mesmo contexto, Prof. Pedro orienta: “Meu filho, é perca de tempo ficar tentando adivinhar o futuro. Ninguém tem acesso ao futuro – em filosofia chamamos de futuro contingente. Ao ansioso, vale lembrar que toda a preocupação e desejo de controle de coisas mínimas não tem sentido, pois temos uma única certeza empírica: a de que vamos morrer um dia. Os medievais chamavam isso de memento mori; este ato de lembrar-se da mortalidade. Isso é muito salutar, pois dimensiona sua vida, suas preocupações e seus supostos problemas. Podemos encontrar esse momento de reflexão, com frequência, durante a oração. A oração é um momento de olhar sereno sobre as coisas. Pratique mais a oração e deixe de se preocupar com coisas que não estão sob seu poder”.

“Exercício” em busca de temperança

“Se tu cedes o tempo todo à fome, ao sono, ao desânimo, etc., que poder terás sobre ti mesmo?” Prof. Dr. Pedro Miranda.

Primeiro é preciso aprofundar um pouquinho a análise sobre a Temperança. Nosso consultor começa afirmando que “a temperança nos dá mais liberdade de ação”. Ele diz que isso acontece porque “os nossos apetites concupiscíveis estão o tempo todo nos chamando para satisfazê-los”. Imagine o seguinte cenário:

“Se tu cedes o tempo todo à fome, ao sono, ao desânimo, etc, que poder terás sobre ti mesmo? A princípio, vai achar que é você quem decide as coisas dentro da sua mente. Mas no fundo somos escravos de nossos desejos mais simples; e estamos assim porque não educamos nosso corpo a obedecer nossa vontade. Falta-nos as virtudes. Em particular, falta-nos muito a temperança”.

E como adquirir essa virtude?

“Essa virtude é adquirida por meio do hábito. O hábito finca em nós uma disposição. O quão dispostos estamos para negar um prazer simples como um chocolate, um doce, um agrado, uma bebida? Quem não consegue resistir a essas coisas simplesmente não está livre acerca desse estímulo. Isso significa que você não consegue escolher livremente negar, ou nega com dor e sofrimento. Toda virtude, a temperança inclusa, visa nos libertar. Quer ter mais poder sobre si e se libertar dos estímulos exteriores e interiores? Mortifique tua concupiscência. Treine ela para estar forte para pegar os estímulos que os sentidos corpóreos nos demandam. Quanto mais fizermos isso, mais livres seremos e mais tempo teremos para fazer o que realmente desejamos. E o melhor disso tudo é que só depende de você”.

A gula pode enfraquecer a vida intelectual

E que outros males a Gula pode causar, além de doenças e insatisfação com a estética do próprio corpo? Vale citar o comentário do sacerdote francês Adolph Tanquerey (1854-1932), que era Doutor em Direito Canônico e Teologia Dogmática: “A malícia da gula vem de escravizar a alma ao corpo, materializar o homem, enfraquecer a vida intelectual e moral [...]” – está no livro A Vida Espiritual – Explicada e Comentada (1961 - Tradução do Padre Dr. João Ferreira Fontes, pág. 457).

Terminamos, aqui, a terceira reportagem da série Vícios e Virtudes. A próxima será sobre Avareza e seu oposto: Generosidade.

(Entrevista e Redação: Jornalista Rita Miranda – RP 14.621)
Matéria publicada no antigo site do Portal CCO em 2 de set de 2022