O Defunto: gótico religioso

Confira o novo artigo de Francielle Ferreira sobre a obra 'O Defunto', uma investida do reconhecido Eça de Queirós pela literatura gótica.

O Defunto: gótico religioso
(Ilustração de Bruna Lubambo na capa do livro O Defunto – Eça de Queirós – organizado por Adriano Messias e publicado pela SOWILO EDITORA; 1ª edição - 1 janeiro 2022).


O renomado escritor português Eça de Queirós (1845 – 1900) conseguiu fazer um enlace triunfal entre a temática gótica e o fervor religioso no conto “O DEFUNTO”. Como já exposto em outro artigo, o ideal gótico não é contrário à qualquer religião e muitos góticos são cristãos. 
Paulatinamente a narrativa sobrenatural – de apenas 29 páginas – aguça nossa curiosidade pelo desfecho da história que nos prende mais e mais. Através do pontapé inicial, várias teorias vão sendo fantasiadas em nossa mente.

A história é sobre D. Rui de Cardenas que havia se mudado para a cidade de Segóvia, na Espanha, no ano de 1474 e logo se encantou por D. Leonor, uma beldade casada com um fidalgo (membro da nobreza) riquíssimo e muito ciumento, chamado D. Alonso de Lara.

A partir do momento que o protagonista se apaixona pela senhora de Lara e busca sempre formas de vê-la, já começamos a imaginar se ela vai trair o marido com ele. Entretanto, no decorrer do texto, D. Leonor mostra que é uma mulher pura e muito fiel.

Até mesmo D. Rui acaba por afastar o pecado de desejar mulher casada, tendo em vista a indiferença dela e por ser muito devoto de Nossa Senhora do Pilar que considerava ser sua madrinha. Veja-se o pensamento dele: “Ela não quer, eu não posso, foi um sonho que findou, e Nossa Senhora a ambos nos tenha na sua graça!”.

Então, surpreendentemente, a aia (dama de companhia) de D. Leonor conta para seu patrão sobre D. Rui que ficava rondando sua esposa na igreja, despertando-lhe um ciúme descontrolado. O senhor de Lara também já havia observado, através de sua janela, o comportamento pretensioso de D. Rui. Em sua cabeça, o protagonista havia atentado contra a virtude de sua mulher, contra sua honra e merecia morrer por isso.

Após D. Alonso ter a ciência do interesse amoroso do protagonista, D. Rui já havia se tornado indiferente à presença de D. Leonor, tendo em vista ter desistido dessa ilusão. No entanto, essa nova postura causou ainda mais desconfiança no rancoroso fidalgo que era complexado por sua idade “grisalha e feia”.

Assim, ele decidiu ir para outra propriedade sua, em Cabril, que ficava a duas léguas de Segóvia e armar uma emboscada para D. Rui. O senhor de Lara obrigou D. Leonor a escrever uma carta de amor para o protagonista, marcando um encontro escondido para poder matá-lo. A pura mulher nem sabia quem era D. Rui de Cardenas, somente depois associou que ele poderia ser o jovem que vira na igreja.

Como nada podia fazer, embora quisesse salvar D. Rui da cruel armação de seu marido, apenas orou para Santa Virgem do Pilar. Da mesma forma, D. Rui, após receber a carta que acreditou ser de sua amada, rezou para Nossa Senhora do Pilar. No fundo, o senhor Cardenas sabia que seria errado aceitar o convite de passar a noite com uma mulher casada, mas seu desejo por ela era tamanho que resolveu arriscar. Existia uma luta interna entre o certo e o errado.

Para chegar à Cabril, D. Rui passou pelo Cerro dos Enforcados e algo macabro aconteceu: um dos homens que estava enforcado pediu para ele cortar a corda de seu pescoço e disse que o acompanharia a Cabril para ganhar uma grande graça. D. Rui não tinha certeza se ele estava vivo ou morto, mas tendo feito o sinal da cruz, considerou que o homem poderia ter procedência divina.

O enforcado acompanhou o protagonista e, quando chegaram na casa, foi no lugar de D. Rui, usando seu sombreiro e sua capa. Enquanto isso, D. Rui observava e, somente quando o misterioso homem voltou com uma adaga cravada no peito, compreendeu que aquele encontro não era de amor e sim de morte!

D. Rui fugiu com o enforcado que pediu para ser colocado novamente na forca e ainda solicitou que: “ao chegar a Segóvia, tudo conteis fielmente a Nossa Senhora do Pilar, vossa madrinha, que dela espero grande mercê para a minha alma, por este serviço que, a seu mandado, vos fez o meu corpo!”.

Assim, D. Rui constatou que um defunto foi usado para salvar sua vida, graças a Nossa Senhora do Pilar. Já D. Alonso não entendeu como D. Rui estava vivo, tendo em vista ter desferido três golpes com a adaga. Somente depois soube que um dos enforcados do cerro das forcas estava com sua adaga cravada no peito, deixando a cidade espantada.

Sem nada entender e atormentado com seu segredo, D. Alonso foi definhando até a morte. Posteriormente, D. Leonor voltou para Segóvia e acabou se casando justamente com D. Rui de Cardenas em 1475. Através desse tico conto, restou cristalino que o gótico e o religioso possuem viés sobrenatural.

Vale a pena ler o conto completo! Ele está inserido no livro “Dentro da Noute: Contos Góticos” (2017), organizado por Ricardo Lourenço e disponível gratuitamente no site: https://projectoadamastor.org/antologia-dentro-da-noute-contos-goticos/